segunda-feira, 27 de maio de 2013

De tesouras e franjas

No auge de seus 8 anos, em um típico dia de inverno, Alice cortou sua própria franja. A culpa foi da tesoura de cabo azul, que estava sobre a escrivaninha e a mirava com ar de desafio. "Controle-me se for capaz!", dizia a tesoura à menina, que no dia usava um conjunto de moletom de calças cor-de-rosa. Após um longo trocar de olhares com a tesoura, Alice decidiu tomá-la às mãos. E então o fez - e sem dar ao menos uma espiada no espelho. Sentiu os fiapos de cabelo que antes estavam presos à sua cabeça passarem por seu nariz e em seguida os viu cair ao chão. A sensação foi tão libertadora que Alice tornou-se uma cortadora compulsiva: cortou a colcha, o tapete e a cortina. O som da tesoura cortando o que quer que fosse era puro deleite aos seus ouvidos. A menina sentia-se no controle não só daquelas pequenas hastes envoltas em plástico azul, mas também de si própria e do mundo. O frenesi durou ainda alguns instantes até que, subitamente, Alice foi dominada pelo medo. Não se pode sair por aí cortando tudo o que se vê pela frente, afinal. Ou será que pode? O medo a fez tentar camuflar seus feitos. Ridiculamente tentou esconder os fiapos de cabelo atrás da porta; prendeu a cortina e dobrou a colcha. Mesmo assim, algum tempo depois a mãe, em visita ao seu quarto, notou o que a pequena Alice havia inventado. E então veio a bronca. A bronca que silenciou Alice. Que silenciou o cortar.
Incapaz de cortar, dali em diante Alice passou a viver no marasmo do tedioso mundo dos cabeleireiros e seus salões de beleza. Era difícil encontrar um que não mutilasse seu cabelo. Assim, a migração era frequente.
Aos 21 anos, já morando longe dos pais, a menina havia se tornado independente. A louça, ela lavava com esponja e detergente; a roupa, com sabão; o cabelo, com shampoo e condicionador. Tudo aparentava estar em seu lugar. Apenas aparentava, pois ela sabia que lhe faltava algo. Um dia, em seu quarto, em meio à bagunça de sua escrivaninha, encontrou sobre ela uma tesoura. Uma tesoura de cabo azul. Uma tesoura de cabo azul, que deveria estar na gaveta, mas que pela pressa ou algo que a interrompeu durante a tarefa de guardá-la na tal gaveta após o uso fez com que Alice a pussesse ali mesmo, sobre a escrivaninha. E então a troca de olhares, e então novamente o jogo de poder. Alice tomou-a às mãos e cortou. Cortou a franja, e dessa vez apenas a franja, pois o frenesi era tanto que já a satisfazia. Dessa vez, mirou-se no espelho. Queria um resultado perfeito. E o conseguiu.
Se o tivesse feito em qualquer outra fase da vida, a franja teria ficado torta. Torta como estavam seus pensamentos, suas decisões, seus rumos. De certa forma, a franja recém-cortada que Alice agora admirava pelo espelho refletia o seu estar e a sua certeza. O domínio sobre a tesoura era também o domínio sobre a sua vida.

domingo, 19 de maio de 2013

Caindo
num buraco fundo
um poço profundo
cheio d'água
semtempoprarespirar.

segunda-feira, 13 de maio de 2013

Despedida. Ao mesmo tempo em que me dói o peito, anseio como nunca voltar. Por fim acho que entendo um pouco do sofrimento do meu pai, uruguaio radicado no Brasil há mais de vinte anos: ele sempre me disse que quando está aqui sente falta de lá e que, quando está lá, sente falta daqui.
Pois bem. Eu estou nisso.
Quando em Curitiba, sinto falta de São Paulo.
Quando em São Paulo, sinto falta de Curitiba.
Essa dorzinha leve que me acompanha todos os dias agora toma conta de todo o meu corpo enquanto miro minha mala aberta, sobre o chão, e a bagunça - que também sempre levo comigo - espalhada por todo o quarto.
Estou fadada a ser uma eterna itinerante. A sempre sentir saudade, a sempre querer voltar, a sempre desatar a chorar sem motivo ou explicação qualquer simplesmente por sentir falta de alguma coisa, de alguém, seja lá o que for, não importa onde eu esteja.